TRAÇOS DO ARQUITETO ACÁCIO GIL BORSOI EM TERESINA

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O olhar atento de um menino nos desenhos rabiscados do pai marcava o início de uma trajetória na história da arquitetura brasileira. Acácio Gil Borsoi se inspirou no traço do desenhista e decorador Antônio Borsoi para projetar obras que demarcaram a modernidade na paisagem urbanística do Brasil, do Nordeste e de Teresina. Um dos primeiros alunos da Faculdade Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (FNA), Acácio foi o responsável pela projeção de prédios importantes para o Piauí, como o Tribunal de Justiça (1975) e a Assembleia Legislativa do Estado (ALEPI, 1986), além do Projeto do Memorial da Praça Da Costa e Silva e do Conjunto Habitacional do Mocambinho.

Nascido no Rio de Janeiro em 1924, a vida profissional de Acácio Gil Borsoi começou na cidade carioca, com a produção de projetos residenciais e prédios institucionais. Ainda graduando e recém-formado, o filho de Antônio Borsoi e Ynayá Pinheiro atuou no escritório de Affonso Eduardo Reidy, nascido em Paris e que fez carreira no Brasil, tornando-se conhecido por obras como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Conjunto residencial Pedregulho e por integrar a jovem equipe modernista do Palácio Capanema, liderada por Lúcio Costa e a presença de Oscar Niemeyer.

Tribunal de Justiça do Piauí | “A ideia é que o cidadão é protegido. Os pilares são como uma grande árvore de concreto, construída pelo homem, e simbolizando um abrigo” — Eduardo Borsoi.

Borsoi foi também auxiliar do arquiteto e pintor Rocha Miranda no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Sphan (atualmente Iphan). Anos depois, tornou-se consultor do órgão em Pernambuco. Em Recife, lecionou no curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Belas Artes, onde ganhou notoriedade e influenciou uma geração de novos arquitetos. Dedicou-se também à vida docente, abandonando a academia com a ascensão da Ditadura Militar no Brasil (1964–1985), que impôs severas restrições às universidades.

A década de 1950 marca o início dos projetos de Borsoi em Pernambuco. O conjunto residencial da Praça Fleming foi uma das primeiras obras de habitação coletiva em Recife. Nesse período, o arquiteto começou a projetar edifícios que contribuíram com a verticalização da cidade, trabalhou em desenhos para residências e nos esboços do projeto do Hospital Restauração e no Museu de Arte Moderna do Recife.

Dos anos 1960 aos 2000 sua produção se espalhou por São Paulo, Rio de Janeiro e Teresina, onde teve filiais do escritório Borsoi Arquitetos Associados.

Na capital do Piauí, Borsoi realizou uma das obras mais importantes da sua carreira, visitada por arquitetos de todo o Brasil: o Tribunal de Justiça do Estado. Eduardo Borsoi, filho de Acácio e também arquiteto, diz que o projeto do pai foi concebido com a ideia de ser um abrigo para a justiça e a população. “O cidadão é protegido por aquele prédio e no amparo das leis. Os pilares são como uma grande árvore de concreto, construída pelo homem, e simbolizando um abrigo”.

Para Teresina era essencial a ênfase na ventilação, por isso as coberturas que avançam sobre o prédio e os elementos vazados”, Eduardo Borsoi, arquiteto, filho de Acácio.

A obra é tida como um sonho realizado de Borsoi e também uma ousadia para a época, em Teresina, dada a novidade do projeto em concreto armado, experimentada pelos arquitetos modernistas no Brasil e no mundo, como Le Corbusier. “Foi uma experiência até meio experimental, mas com um resultado incrível!”, comenta Eduardo. As características do edifício, de porte vazado, com lâminas de concreto verticais sustentando a cobertura plana, tem relação com as estruturas de um fórum romano, mas com elementos modernistas. “Ele conseguiu colocar no Tribunal de Justiça do Piauí a ideia de fórum, inclusive com praça e microclima interno, com os elementos em volta, que são os conjuntos de colunas”, diz Eduardo, que também é professor de arquitetura em faculdades particulares em Teresina.

Arquitetura Brutalista e adequada ao clima

Rômulo Marques, arquiteto e pesquisador de Borsoi, aponta que o domínio do concreto armado, usado nos projetos de Borsoi, foi uma técnica que permitiu a qualificação da mão de obra brasileira do setor da construção civil. Sobre o prédio do Tribunal de Justiça do Piauí, ele diz: “Em Teresina, esse é o primeiro destaque de adequação de projeto às tradições construtivas locais. Ele alcançou alta qualidade construtiva aliando arquitetura moderna ao conhecimento dos mestres de obra, pedreiros e operários locais”.

O Tribunal de Justiça do Piauí entrou para a história da chamada Arquitetura Brutalista — obras grandiosas que privilegiam a “verdade estrutural” das edificações e não escondem elementos como concreto, vigas e pilares — sendo um dos primeiros no Nordeste nesse estilo. Atualmente o prédio está em processo de tombamento, para ser reconhecido como patrimônio Histórico e Cultural. Antes disso, foi barrada a construção de um anexo que descaracterizaria a estrutura do prédio.

Borsoi alcançou alta qualidade construtiva aliando arquitetura moderna ao conhecimento dos mestres de obra, pedreiros e operários locais” — Rômulo Marques, arquiteto.

Borsoi fez parte do segundo movimento modernista do Brasil, a chamada arquitetura moderna crítica. Segundo Eduardo Borsoi, arquiteto e filho de Borsoi, os trabalhos dele se dedicavam a dialogar com o ambiente. Em Teresina, nos projetos do Tribunal de Justiça e da ALEPI, por exemplo, foram levados em consideração o terreno em que os prédios estão localizados e o clima da cidade para criar o desenho das obras.

Na Assembleia Legislativa Borsoi utilizou materiais que reduzem o calor, como tijolo de barro, cerâmica, seixo e concreto. “Para Teresina era essencial a ênfase na ventilação, por isso as coberturas que avançam sobre o prédio e os elementos vazados”, explica Eduardo.

Assembleia Legislativa do Piauí | Uso de materiais que reduzem o calor, como tijolo de barro, cerâmica e seixo.

A professora de Arquitetura da Universidade Federal do Piauí (Ufpi) Ana Rosa Negreiros, pesquisou sobre o arquiteto em seu mestrado e menciona, em artigo, que Borsoi buscou o equilíbrio entre luz e sombra, diante do sol do Piauí, para executar um projeto moderno e mais adequado às condições climáticas.

A obra concebeu três espaços que articulam uma estrutura bioclimática: a praça cívica, na área externa; os blocos de dois e três pavimentos, onde estão os gabinetes dos deputados e espaços administrativos; e, por fim, a área do plenário e serviços complementares.

“A sensibilidade com que o arquiteto pensou a adequação bioclimática, sobretudo a proteção à incidência direta de radiação solar, associada a soluções até então não exploradas na capital, reforça o compromisso com a modernidade arquitetônica”, explica o arquiteto e pesquisador Rômulo Marques.

Assembleia Legislativa do Piauí

Outra marca arquitetônica de Borsoi na capital do Piauí está no projeto da praça Da Costa e Silva (1975), às margens do rio Parnaíba. O trabalho do arquiteto consistiu em um memorial que faz homenagem ao poeta nascido em Amarante e dialoga com o projeto paisagístico da praça, assinado pelo paisagista Roberto Burle Marx. No espaço estavam gravadas poesias de Da Costa e Silva, mas hoje a situação é de abandono.

Eduardo Borsoi destaca que a praça representou um marco para a cidade, quando Teresina estava começando a constituir seu acervo arquitetônico. “Além da homenagem ao poeta, a praça revela um reconhecimento local, geográfico ou topográfico, ao utilizar um córrego natural, a céu aberto, no trânsito pela praça e monumento”, diz.

Mocambinho: 12 mil casas, área verde e circulação dos moradores

Borsoi era conhecido pelos grandes projetos modernistas, mas não se limitou a uma vertente. Ele também trabalhou em projetos sociais de habitação. O de maior destaque foi Cajueiro Seco (1961/1964), em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Diante de condições precárias de habitação, o arquiteto envolveu os moradores e utilizou materiais de fácil acesso e conhecimento do manuseio, como taipa de pilão, barro armado e palha.

No Cajueiro Seco foram construídos escola, centro de trabalhos comunitário, ruas, quadras e acesso ao transporte. O projeto foi apresentado em um congresso internacional de Arquitetura, em Cuba, como referência de modelo de habitação coletiva. O golpe de 1964 interrompeu o projeto, cortou o orçamento disponível para as construções e expediu mandado de prisão contra Borsoi.

Mocambinho | 12 mil casas e preocupação com áreas verdes e o desenvolvimento econômico local.

No projeto Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, considerado modelo de programa de urbanização em áreas carentes, o arquiteto também trabalhou na integração da comunidade e foi premiado pela União Internacional dos Arquitetos. “Mudar realidades com projetos sociais é uma luta. Muitas obras de meu pai foram desenvolvidas junto a prefeituras, governos, para que fossem viabilizadas”, comenta Eduardo.

As obras de habitação coletiva também impactaram a vida dos teresinenses. Borsoi projetou o conjunto habitacional do bairro Mocambinho (1979), com a construção de 12 mil casas dentro das regras do Banco Nacional de Habitação, onde a moradia projetada leva em consideração a renda da população e o desenvolvimento econômico local como centro urbano.

Memorial ao poeta Da Costa e Silva, na praça de mesmo nome.

O conjunto foi projetado com vias de transporte no entorno, vias vicinais e áreas de vegetação, além de vias de pedestres transversais para a circulação dos moradores. Segundo o pesquisador Rômulo, o projeto de moradia de Borsoi foi uma experiência exitosa para Teresina. “O Mocambinho é testemunho que boas políticas públicas são capazes de promover mudança para melhor na vida das pessoas. Inicialmente destinado à população socioeconomicamente vulnerável, que não tinha acesso basilar ao direito à cidade — que é a moradia –, o conjunto foi se transformando e hoje se projeta como uma centralidade urbana, cujos moradores manifestam orgulho de pertencimento”.

Para o estudioso, o Mocambinho foi fundamental na condição urbana da zona norte de Teresina, contribuiu para expansão do sistema de equipamentos urbanos e comunitários do município e também possibilitou que a região atraísse investimentos para a execução de projetos estruturantes. “Da pequena à média escala de intervenção, o Mocambinho tem atuado como laboratório na estruturação urbanística de Teresina”, disse.

Borsoi recebeu pedido do ex-governador Alberto Silva para a construção de um novo e moderno teatro para Teresina. Eduardo conta que a proposta era ótima, porém, em visita às instalações do Theatro 4 de Setembro, na Praça Pedro II, Borsoi percebeu que o valor histórico e social se sobrepunha à criação de um novo espaço. Exímio na preservação arquitetônica, ele então orientou que Alberto Silva descartasse a ideia de um prédio novo e reformasse e recuperasse o 4 de Setembro. “A arquitetura não é só fazer prédio novo, tem hora que você tem que tirar o chapéu para prédios antigos, que é onde você trabalha valores, história”, diz Eduardo.

Borsoi também trabalhou na revitalização do Palácio de Karnak, sede do Governo Estadual, e no Palácio da Cidade, edifício sede da Prefeitura de Teresina.

Legado para a arquitetura

Referência para a arquitetura moderna brasileira, Borsoi é estudado por profissionais e acadêmicos da área. A professora Ana Rosa Negreiros realizou levantamento sobre a arquitetura do Brasil pós 1950, e cita Borsoi como referência do movimento moderno.

A paisagem urbana de Teresina vem sendo violentada por edificações sem compromisso com questões identitárias, climáticas e bem-estar dos usuários” — Rômulo Marques, arquiteto.

Outros trabalhos que estudaram a formação clássica do arquiteto na FNA também examinaram os aspectos de civismo e monumentalidade das obras e as questões bioclimáticas dos projetos. O projeto do Conjunto do Mocambinho e as transformações no espaço e tempo também são referências em estudos.

Em parceria com o arquiteto Rômulo Marques, Ana Rosa organizou o livro Acácio Gil Borsoi: produção arquitetônica moderna em Teresina, sobre a vida, formação acadêmica e obras modernistas do arquiteto em Teresina. Os autores se referem a Borsoi como um dos arquitetos de maior relevância na historiografia da arquitetura do Nordeste brasileiro.

Rômulo pontua que, para os profissionais da arquitetura piauiense, é importante revisitar a obra de Borsoi e imergir na cultura arquitetônica brasileira, responsável pela projeção do Brasil na cena internacional. Ele destaca que o contato com a obra do arquiteto em Teresina pode inspirar uma educação patrimonial, pois há referências culturais locais e universais que podem despertar identificação, à medida que as pessoas tenham acesso aos espaços concebidos por ele e possam usufruir do melhor da arquitetura, hegemonicamente acessível à classe rica.

Ele também comenta que tem presenciado em Teresina o declínio de práticas arquitetônicas em favor da economia e demandas do mercado imobiliário. “A paisagem urbana de Teresina vem sendo violentada por edificações sem qualquer compromisso com questões identitárias, climáticas, com o bem-estar dos usuários, ou com a escala humana. Entender verdadeiramente a produção de Borsoi é perceber que o impacto de uma demanda de redução de custos não necessariamente deve implicar na concepção de objetos arquitetônicos triviais”, adverte, lamentando que práticas contemporâneas possam, de certa forma, ocultar o legado de Borsoi para futuras gerações.

Matéria publicada na edição #51 da Revista Revestrés | Fotos: André Gonçalves e Acervo Borsoi

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Matérias & Reportagens | Valéria Soares
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Jornalista formada pela Universidade Estadual do Piauí. Atua na produção de reportagens e matérias sobre cultura, entretenimento, arte e gente.