UM CIRCO NO FUSCA

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Palhaços cearenses espalham alegria pelo Nordeste a bordo de um Fusca 1974

Era mais um dia voltando para casa, vindo do trabalho. Na moto, o casal Henrique Rosa e Amanda Santos terminava mais um expediente de espetáculos que faziam como palhaços em um Parque Aquático de Aquiraz, no Ceará. Quando uma ideia, misturada com um sonho, dá origem a um projeto: um circo itinerante em um Fusca.

Henrique sugeriu: “Ei, Amandinha, vamos comprar um Fusca e viajar por aí”. A Amanda, que sonhava em ter um fusquinha desde criança, não titubeou. Com algum dinheiro juntado, partiram para a compra do automóvel, de dimensões um tanto limitadas. Mas era nele que queriam viajar e levar alegria do circo para as ruas das cidades.

“Compramos esse Fusca e pensamos: e aí como vai ser o nome. Fusca no Circo? Circo no Fusca?”. Amanda completa: “Aí veio o FusCirco”. Com o automóvel comprado e a ideia de cada um para apresentações solo, hora de cair na estrada. O primeiro Fusca não aguentou o tranco e tiveram que encontrar outro, com motor mais resistente aos itinerários do FusCirco. “Ainda éramos novinhos nesse ramo de Fusca”, brinca Amanda.

O segundo modelo, um fusquinha azul-claro com detalhes em amarelo, ano 1974, passou a ser o transporte para levar as estripulias de Rupi (Amanda) e o malabarismo do Palhaço Pitchula (Henrique) para as pessoas. Mas veio a pandemia. Contratos de trabalho cancelados. Isolamento em casa. Era tempo de repensar a rota.

Lives, vídeos no Youtube e outras formas de se conectar com o público foram utilizados. Mas faltava o essencial: a boa gargalhada da plateia. “Em casa, comecei a pensar em me apresentar para as pessoas assistirem da calçada, né?”, conta Henrique, sobre a possibilidade de chegar nas ruas com uma visita surpresa.

Em uma apresentação rápida, a rua se transformava no picadeiro, as casas em arquibancadas e um número era apresentado, tendo o malabarismo das facas, no monociclo, como “Gran finale”. As primeiras exibições da “RIsita surpresa”, nome do projeto pensado em 2020, começaram nas casas de familiares. Depois foram se expandindo e circulando pelas ruas de Fortaleza.

A animação das pessoas era o gás que eles buscavam para complementar o espetáculo. “Já estávamos há mais de um ano em casa, nos apresentando pra tela de celulares. A gente já não aguentava. Eu queria ver o público ali olhando pra gente, respondendo, o que está funcionando. Porque já tínhamos um número e apresentamos algumas vezes no modo virtual, mas não tinha a reação do público. Não sabia o que funcionava”, diz Henrique.

“Senhoras e senhores, respeitável público! Chegoooou! Chegoooou na porta de sua casa a RIsita Surpresa”, anunciam, no som agudo do megafone, a chegada do FusCirco. “As pessoas começavam a sair nas portas, porque é um barulho muito grande. E a gente dizendo que vai começar o espetáculo”, conta Amanda, reforçando, em tom de brincadeira, que o público era lembrado dos cuidados necessários para não se aglomerar. As apresentações, no estilo dos famosos carros de telemensagem, foram gradativamente moldando o projeto do circo no Fusca.

FusCirco na estrada

A expectativa de Pitchula e Rupi para retomar a estrada já ganhava fôlego. Com a chegada da vacina e alguma melhora na situação da pandemia, eles começaram a encher o tanque do fusquinha para ir mais longe. “O Fusca é o nosso transporte, é o nosso cenário e a nossa casa”, conta Amanda sobre como o automóvel tem sido a peça coringa para tudo que eles precisam. “A escada, o monociclo, o clarinete, nossa casa de camping, as roupas, tá tudo dentro”, detalha.

O trabalho, com foco na linguagem popular do palhaço de rua, é pensado para circular em lugares de diferentes contextos. De lugares de chão de terra batida a shoppings, os palhaços já provocaram altas risadas.

Amanda e Henrique começaram o projeto no Ceará. Passaram por cidades como Flecheiras, Pacatuba, Guaramiranga e Sobral. Nos municípios, o coletivo tem sido convidado a integrar outros projetos culturais de expansão do circo, em parcerias com órgãos culturais ou ações independentes. Pelo perfil no Instagram (@fuscirco), divulgam o trabalho e alcançam públicos fora da região em que residem. As conexões também contribuíram para chegar ao Piauí e ao Maranhão.

Em solo piauiense, o FusCirco passou por Teresina, Altos e Parnaíba. Na capital, fizeram parte da XII Mostra Nacional de Teatro ao Alcance de Todos, organizada pela Companhia CotJoc, na Cidade Jardim (Zona Leste), e também se apresentou na comunidade da Cacimba Velha e no Parque da Cidadania.

“Foi lindo chegar com o nosso FusCirco na comunidade Cacimba Velha. Ver as pessoas chegando devagarzinho, carregando as cadeiras para assistir os espetáculos da Mostra, foi de encher os nossos corações de alegria e esperança de que a arte resiste e pode, sim, estar ao alcance de todos”, descreveram em legenda do perfil do Instagram. No registro fotográfico, os palhaços estão em frente a um sobrado de palha, sendo assistidos por crianças e adultos.

Palhaço de rua além do humor

Viver da cultura e da arte no Brasil têm sido um ato de resistência. Trabalhar com o circo é bem mais do que fazer as pessoas rirem. É ter uma profissão, pagar as contas e passar mensagens importantes para a sociedade.

“Antes de fazer o grande número, do ‘monociclo da girafa’, em que eu fico em cima do monociclo de olhos vendados e faço malabarismo com três facões, a gente para e informa que o que fazemos é nosso trabalho. O circo de rua é uma das artes mais democráticas, porque assiste quem quer e paga quem pode. Quem tem, se quiser pagar pelo nosso espetáculo, esse é o momento, porque vamos passar o chapéu”, explica Henrique, sobre o momento em que é coletada a contribuição voluntária dos espectadores.

Ele começou a trabalhar com circo em 2008, através de projetos culturais financiados pelo Governo Federal. Mesmo achando que não tinha jeito, devido à timidez, após as primeiras experiências o encantamento pela palhaçaria aflorou. “Estudei teatro, figurino, maquiagem e montagem. A gente (o grupo do projeto cultural) montou um evento. Fizemos uma circulação em Maracanaú, no Ceará (cidade de origem de Henrique), e quando eu participei me apaixonei, vi que ali era o que eu queria fazer na minha vida”, conta. Passou a pesquisar sobre a arte do circo nas ruas e foi colecionando prêmios, como na V edição dos Profissionais do Ano — Sated/Ceará — em 2018. No currículo, registra passagens pelo projeto Palco Giratório Nacional, por festivais e convenções artísticas em todo o Brasil.

Já para Amanda, o ofício na arte circense começou por volta de 2017. Ela estudava estética, mas fez um curso de iniciação à palhaçaria. “O período em que me formei em palhaçaria foi o mesmo que terminei estética. Fui me apresentando em mostras e consegui um emprego no Beach Park, de animadora de roda (apresentação nos moldes do palhaço de rua). Foi lá que pratiquei e estudei por dois anos e aprendi a ser palhaça. Hoje vivo só de palhaça”, diz aos risos, em referência à profissão. Mesmo com a falta de incentivo na área cultural, eles lutam por espaço e apoio, e querem levar a mensagem de que o palhaço de rua é agente transformador da sociedade. “O palhaço tem a liberdade de fazer rir, de fazer pensar, de fazer chorar, de fazer as pessoas refletirem sobre aquele espetáculo por por um minuto, por dias, por um ano”, diz Henrique.

Durante a pandemia os palhaços buscam conscientizar a população sobre o papel do artista de rua, um dos profissionais mais afetados com o desemprego e a falta de financiamento. Henrique conta que, nos espetáculos, fala para o público que o mesmo trabalho que um “artista global” faz, o de rua também faz. A burocracia, preparar todos os números, confeccionar figurinos: tudo exige tempo e dedicação. “E as pessoas acham que a gente não trabalha, só se diverte. A gente diz para o público que as pessoas que não apoiam os artistas, que foram contra editais e auxílios durante a pandemia, são pessoas que continuam escutando a música no aplicativo, assistindo novela, vendo cinema em casa… Aí eu quero saber de vocês: a arte é necessária?”.

As histórias, os sorrisos e as pessoas que encontram pelo caminho dão a Henrique e Amanda motivação para seguir com o FusCirco. “Nós vamos terminar o Nordeste no primeiro semestre de 2022, depois é Brasil e quem sabe A-r-g-e-n-t-i-na”, diz Amanda arrastando as palavras em um portunhol empolgado.

Eles avisam que o fusquinha segue recebendo cuidados e manutenções. E que a alegria e o bom humor de Pitchula e Rupi continuarão seguindo pelas estradas, para revigorar corações.

Matéria publicada na edição #50 da Revista Revestrés | Fotos: Jhonatas Dourado

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Matérias & Reportagens | Valéria Soares
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Jornalista formada pela Universidade Estadual do Piauí. Atua na produção de reportagens e matérias sobre cultura, entretenimento, arte e gente.